Temido por muitas pessoas, difundido por muitas religiões, o inferno, ou infernos, como aparece no plural algumas vezes, em princípio, soa como uma punição àqueles que não cumpriram as regras divinas de maneira adequada. Porém, ele possui, em seu conceito, um importante ensinamento.
É interessante perceber que alguns elementos se repetem quando o assunto é inferno: frio ou calor extremos, fome, sede, ou seja, dor em várias maneiras, sendo esses conceitos relacionados à carne, ao corpo, principalmente na tradição cristã. As penitências estão relacionadas a aflições dirigidas à carne, ao corpo humano, através dos sentidos. No budismo, os sentidos são: tato, olfato, paladar, visão, audição e o sentido da mente, de modo que a mente também busca seus próprios prazeres, tais como superioridade, vaidade e fantasias.
Dito isso, percebemos o motivo das tradições dizerem tanto sobre a necessidade de renunciar os sentidos. Se não estivermos firmemente apegados aos prazeres, ao comodismo e ao cumprimento de nossos desejos, nossos sentidos ficarão mais sutilizados, menos intensos para nossas consciências. Porém, caso nos entreguemos às demandas incessantes dos sentidos, poderemos cultivar mal carma, através de ações errôneas motivadas pelas delusões da mente, tais como as seis raízes: apego desejoso, raiva, orgulho, ignorância, dúvida e visão deludida.
Por exemplo, o apego nos faz reter situações, pessoas e objetos que, fatalmente, nos deixarão, além de nos impedir de praticar generosidade, ou mesmo pode nos fazer tomar algo de outra pessoa para nosso benefício. A raiva nos faz desejar eliminar algo que nos faz sofrer, podendo se transformar em agressividade e prejudicar outro ser. O orgulho nos coloca acima de outras pessoas, desprezando as necessidades alheias e colocando nossas necessidades acima das necessidades dos outros, de modo que poderemos ter ações egoístas.
Praticamos tudo isso motivados para satisfazer nossos sentidos e é aqui que se encontra a cilada. Depois de supridos e supervalorizados, os sentidos se tornam nossos mestres, os prazeres nossos objetivos maiores e as dores insuportáveis. Por terem se tornado nossos amos, embora inexistentes e ilusórios, os sentidos nos mantêm agindo em função deles e, quando algo não sai da maneira mais agradável, não conseguimos lidar com a situação. Por outro lado, ao praticar a abstinência dos exageros sensoriais, ao tentar ir além do confortável e ter uma mente focada na liberação da consciência, até mesmo a dor se torna mais leve, ou quando se ilumina, a dor cessa.
Através dessa visão, compreendemos que o inferno só é possível, quando há muito apego aos prazeres sensoriais. Esse inferno não precisa ser um local, de fato, ele acontece nas consciências que não organizam seus conteúdos mentais e emocionais. Por esta razão, praticamos o caminho do meio. Não buscaremos o sofrimento para nos libertar da carne, ou “mortificar a carne”, como já foi pregado no passado, pois isso não faz muito sentido, mas não deixaremos nossa consciência à mercê deles. Estreitaremos nosso foco na virtude, na bodhicitta e na liberação, assim não teremos um inferno a teme, mas sim uma consciência clara, pacífica e de bem-aventurança.
Luís Fernando Rostworowski